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Panorama da Época / Sistema de Arte

  • Foto do escritor: Salão 31
    Salão 31
  • 21 de set. de 2023
  • 6 min de leitura

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Academia Julian, Paris

A arte tem sempre um percurso social e sofre rupturas com as transformações sociais.

A obra de arte começa no ato da criação e se completa na sua relação com o espectador. Como um ato de comunicação, desenvolve-se em um sistema de relações sociais que visa ao público. A fenomenologia da experiência estética oscila indefinidamente entre o ponto de vista do sujeito e o do objeto. Assim sendo, é o ponto de vista estético que cria o objeto artístico. Segundo Bourdieu [1],


o artista tem que enfrentar a definição social de sua obra, isto é, concretamente os sucessos e reveses conhecidos por ela, as interpretações que lhe foram dadas, a representação social, quase sempre estereotipada e simplificadora, que o público de amadores possui a seu respeito. [...] O autor está condenado a esperar na incerteza os sinais sempre ambíguos de uma eleição [...] Ele deve reconhecer em seu projeto criador a verdade de seu projeto criador dada pela recepção social de sua obra [...]

A obra de arte se destina ao espectador e, nessa relação que se estabelece entre a obra e o espectador, tende-se a ampliar o círculo a ponto de transformá-lo em social. O criador da obra de arte ou produtor mantém um sistema de relações com o público consumidor dentro do campo cultural.


O sistema de arte é a maneira como a obra chega ao espectador e o espectador à obra. Ao estabelecer-se, essa relação desenvolve os meios para que as transgressões existam socialmente, uma vez que propõe a assimilação da produção artística à sociedade. A história da arte no Brasil passa por uma lenta evolução marcada por rupturas significativas, levando-se em consideração as transformações sociopolítico-econômicas que a acompanharam.


A real implantação e difusão do modernismo no Brasil são frutos do Salão de 31 no Rio de Janeiro


Embora se costume atribuir à Semana de 22 a importância de ter sido o marco da eclosão do modernismo no Brasil, acreditamos que sua real implantação e difusão se deram com o Salão de 31 no Rio de Janeiro. A tradição do Salon remonta aos tempos de Luiz XIV, em 1667, pouco depois da instalação da Academia Real de Belas-Artes quando acontecia a cada dois anos o Salon d'Apollon, no Palácio do Louvre.


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Jean-Baptiste Debret (1768-1848), Autorretrato

No Brasil, em 1829, a Primeira Exposição Escolar de Belas-Artes é realizada por iniciativa de Debret, então diretor da Academia Imperial de Belas-Artes, com o objetivo de avaliar o trabalho dos alunos. Essas exposições são interrompidas e retomadas em 1840, durante a gestão de Félix Taunay como diretor da Academia, que em 1845 obtém do governo a criação do Prêmio de Viagem.


O Salão, a principal peça de engrenagem na qual está montado o sistema de arte, representa a ocasião de maior prestígio para a consagração da carreira do artista assim como sua aceitação social.


A partir dessas considerações, iremos analisar a história da arte no Brasil nos detendo nos momentos de ruptura e transgressões até o evento que consideramos ter sido o marco da implantação do modernismo em nível nacional – O Salão de 31.



A chegada da Missão Francesa


Considerando que arte é técnica aliada ao saber e que se desenvolve num contexto sociopolítico-econômico, podemos afirmar que o artista colonial não tinha status social, só valendo por sua habilidade e sua produção, uma vez que não possuía autonomia produtiva nem havia na época um ambiente propício para a circulação da sua produção.


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Porto do Rio de Janeiro, em 1808

A chegada da Família Real ao Rio de Janeiro, para abrigar-se da expansão napoleônica que ameaçava Portugal, inicia uma era de transformações que modificam inteiramente a relação do sistema de arte. A abertura dos portos por D. João VI significa a introdução do Brasil no mundo capitalista moderno.


Nesse clima de evolução, a nova sociedade que se forma, composta de comerciantes europeus, cria condições para o crescimento da demanda no campo das artes. A pintura e o desenho passam por um processo de valorização que transforma a visão da sociedade em relação ao artista. Surge daí a necessidade do ensino da técnica a fim de aprimorar a produção artística na medida em que cresce seu reconhecimento social.


Essa necessidade da corte é atendida quando o ministro das Relações Exteriores no Rio de Janeiro, o Conde da Barca, pede ao embaixador na França, o Marquês de Marialva, que divulgue junto a artistas franceses a intenção de se criar no Brasil uma academia de belas-artes. O embaixador entra em contato com Le Breton, então secretário de Belas-Artes do Instituto de França, e o incumbe de organizar uma missão que viria promover as belas-artes no Brasil. Esse fato ocorreu em 1815, quando, na França, Luís XVIII subiu ao trono. Le Breton reuniu artistas que, sendo bonapartistas, acharam conveniente vir para a corte do Rio de Janeiro.


Partindo da Europa em janeiro de 1816, os membros integrantes da Missão Francesa chegaram ao Brasil em março, determinando assim o primeiro passo para a institucionalização do ensino artístico. A Missão Francesa modifica o significado da arte na sociedade brasileira, criando um novo estatuto para o artista: este substitui a simples habilidade de artesão por uma técnica, determinada por cânones instituídos. Modifica-se também a relação da obra de arte com o público: a obra passa a existir como mercadoria, marcando a implantação do sistema de arte nos moldes da Academia Francesa.


D. João VI, no Brasil colônia, cria, sob decreto, em 1816, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. No entanto, as intrigas portuguesas contra os acadêmicos franceses, e as dificuldades de entendimento a fim de estabelecer um regulamento foram causadoras de adiamentos sucessivos e retardaram em 10 anos a instalação dessa escola. Assim, em 5 de novembro de 1826, finalmente surge a Academia Imperial de Belas-Artes, projetada pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny. O pórtico desse prédio, originalmente localizado na antiga Travessa do Sacramento, no Rio de Janeiro, hoje pode ser visto no Jardim Botânico dessa mesma cidade.


Os mestres franceses eram artistas categorizados no ambiente europeu e transmitiam os conhecimentos moldados no universo simbólico neoclássico, totalmente afastado da realidade brasileira.


O sistema de arte no Brasil passa a ser dominado pela Academia: para se consagrar, o artista precisava demonstrar perfeita subordinação aos cânones acadêmicos


O sistema de arte no Brasil passa a ser dominado pela Academia na medida em que os artistas consagrados seriam aqueles alunos que demonstrassem o domínio da técnica, e perfeita subordinação aos cânones acadêmicos. O artista agora passa a ser detentor do saber normalizado por instituição especializada.


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Sala de aula do curso Artes Decorativas com o Prof. Flexa Ribeiro da ENBA

Havia dois tipos de aluno: o aluno livre e o aluno regular. Ao aluno livre não se perguntava nem se era capaz de ler ou escrever, apenas se exigia uma prova de desenho para ver se sabia desenhar. Frequentava aula de desenho e depois, de modelo vivo. Ao final, prestava um concurso de modelo vivo e, se passasse, enfrentava uma prova para pintura.

Nas palavras de Campofiorito [2],


O aluno livre conseguia um prêmio de viagem aqui no Salão, que fazia parte da Escola, de dois anos, para então ficar livre lá, pintando, vendo, desenhando, sem nenhum outro compromisso.

A situação do aluno regular era bem diferente. Sua formação durava três anos e abrangia matérias básicas – geometria descritiva, perspectiva, história da arte, filosofia da arte, anatomia artística – e aulas práticas. Nessas aulas práticas concorria-se a prêmios. No final do ano, em vez de notas, ganhavam-se medalhas que iam somando para a concorrência do prêmio de viagem.


E nisso foram 10 anos de Escola, porque depois que a gente faz esses três anos gerais, a gente entra na aula de pintura e aí fica marcando passo, todo o tempo tirando um prêmio, outro prêmio, até tirar a grande medalha de ouro, então vai concorrer ao prêmio de viagem; aí são sempre dois ou três para concorrer e só até 30 anos. Eu ganhei o prêmio de viagem com 29 anos em 1929 e viajei em 1930. [3]

Havia apenas quatro ou cinco alunos regulares para cada 50 alunos livres. Não havia aluno livre para arquitetura porque o ensino de arquitetura carecia de conhecimentos teóricos específicos. Ao final de sua formação, o aluno saía pintor, arquiteto, escultor e gravador de medalhas. Eram as quatro Belas-Artes.


Quando conquistado o Prêmio de Viagem ao Exterior, o artista frequentava ateliês como a Academia Julian em Paris e a Academia de Belas-Artes em Roma, que correspondiam ao prolongamento dos ensinamentos aqui recebidos, uma vez que se mantinham afastados das correntes europeias mais atualizadas surgidas em meados do século XIX. De volta ao Brasil, esses artistas se tornavam professores e passavam a transmitir o ensino convencional totalmente fora da realidade nacional. Seu reconhecimento social se media pelo sucesso na carreira cuja profissão passa a ser normalizada através da Academia administrada pelo Estado.


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Escola Nacional de Belas-Artes, Rio de Janeiro

Com a Proclamação da República, as reformas constitucionais atingiram o ensino artístico oficial. Benjamin Constant, ministro do Interior da República, assina a reforma aprovando o novo regulamento desejado pelos alunos, criando a Escola Nacional de Belas-Artes (1890), hoje conhecida como Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Nessa mesma ocasião, Rodolfo Bernardelli propôs e viu efetivada a criação do Conselho Superior de Belas-Artes – uma assessoria do governo constituída por intelectuais e artistas com o objetivo de definir a política cultural e artística do país.


O modelo oficial imposto pela Academia estabelece uma relação de poder, condição essa que provocou reações e insatisfações sucessivas com propostas de reformas atenuando a rigidez do ensino no qual a técnica era desenvolvida, mas a criação era recalcada.



[1] BOURDIEU. Pierre. Campo intelectual e projeto criador. In: Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1969, p. 115.


[2] Entrevista de Quirino Campofiorito (1902-1993) para o Projeto Portinari. Niterói, 3 de novembro de 1982.

[3] Entrevista de Quirino Campofiorito (1902-1993) para o Projeto Portinari. Niterói, 3 de novembro de 1982.

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