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O Salão 31

Revolução de 30: Terreno fértil para mudanças

Consequência de longo processo marcado por intenso desejo de mudanças, a Revolução de 30 encerra a República Velha, inaugurando um novo período com a ascensão de Getúlio Vargas.

 

Uma das imediatas transformações ocorridas foi a criação de dois novos ministérios: Trabalho, e Educação e Saúde. Vargas nomeia para ministro da Educação e Saúde o jurista Francisco Campos. Este escolhe, para chefe de gabinete, Rodrigo Mello Franco de Andrade, por sugestão de Manuel Bandeira, figura de destacada importância nas relações com os modernistas de São Paulo e Rio de Janeiro.

 

No campo das artes plásticas, a primeira repercussão foi a nomeação de Lucio Costa para dirigir a Escola Nacional de Belas-Artes, com a incumbência de reformular o ensino artístico.

 

Só a nomeação de um jovem arquiteto de 28 anos, recém-formado, para assumir a direção e a reforma do ensino da Escola de Belas-Artes já assinala uma determinação de mudança de um sistema esclerosado. A Escola, dirigida pelo médico José Mariano Filho, estava dominada pelo modismo do neocolonial e a arquitetura moderna não contava na capital federal com nenhum adepto.

 

Lucio Costa assume a direção da Escola de Belas-Artes no dia 8 de dezembro de 1930:

 

“Foi esta a única razão que me levou a aceitar o convite para diretor da Escola de Belas-Artes: evitar que os nossos escultores e pintores continuassem imobilizados no seu modo de pensar e de ver; evitar que os 450 futuros arquitetos que estudam na Escola, sofressem as consequências da má orientação que tive, fazer desses rapazes 450 verdadeiros arquitetos”. [48]

Em entrevista a Gerson Pompeu Pinheiro publicada em O Globo em 29 de dezembro do mesmo ano, o recém-empossado diretor dá coordenadas da reforma que pretende implantar, conforme solicitação governamental:

 

A reforma visará aparelhar a Escola de um curso técnico-científico tanto quanto possível perfeito, e orientar o ensino artístico no sentido de uma perfeita harmonia com a construção. Os clássicos serão estudados como disciplina; os estilos como orientação crítica e não para aplicação direta. [49]

 

Na mesma entrevista, Lucio Costa se pronuncia a respeito das artes plásticas:

O alheamento em que vive a grande maioria dos nossos artistas a tudo o que se passa no mundo é de pasmar [...] as nossas últimas criações correspondem ainda às primeiras tentativas do impressionismo. Todo esse movimento criador e purificador pós-impressionista de Cézanne para cá é desconhecido e renegado sob o rótulo ridículo de futurismo. É preciso que os nossos pintores, escultores e arquitetos procurem conhecer sem parti pris, todo esse movimento que já vem de longe, compreender o momento profundamente sério que vivemos [...] O importante é penetrar-lhe o espírito, o verdadeiro sentido, e nada forçar. Que venha de dentro para fora e não de fora para dentro, pois o falso modernismo é mil vezes pior que todos os academismos.[50]

É esse espírito aberto e conciliatório que vai tentar renovar o sistema de ensino artístico no Brasil.

Pretendia proporcionar ao aluno a opção entre o ensino acadêmico ministrado por professores catedráticos e o ensino atualizado, ministrado por professores de espírito moderno. Passando do pensamento à ação, montou rapidamente a equipe de novos professores, contratando para ensinar no 4º ano de arquitetura Gregori Warchavchik, na época o único arquiteto que já havia construído edifícios modernos; o arquiteto belga Alexander S. Buddeus [51] , para ensinar no 5º ano; Celso Antônio, para escultura e o alemão Leo Putz para pintura.

 

Celso Antônio viu da seguinte maneira a sua contratação:

 

A meu ver, o ato de Lucio Costa fazendo-nos professores da Escola de Belas-Artes, o arquiteto Warchavchik e eu, veio de modo categórico integrar o nosso primeiro estabelecimento de ensino de arte plástica no movimento moderno que domina o mundo contemporâneo.

 

Assistimos ao movimento político-revolucionário de outubro, e vimos que ele não se ramificou no primeiro momento em todas as atividades do pensamento.

 

A vanguarda intelectual do Brasil sente-se agora mais unida ao movimento revolucionário como representante da corrente nova do pensamento que buscava entre nós um campo vasto onde implantasse suas ideias. Tais gestos, partindo do poder oficial, vieram revolucionar o núcleo intelectual no setor da arte plástica. Está demonstrada assim a unidade de vistas nesse caminho para novos rumos que farão do Brasil um grande país. [52]

 

Warchavchik também aceitou o convite de bom grado:

Não podíamos deixar de aceitar, pois o que se nos pedia era justamente esse pouco que desejávamos: tomar parte na orientação das novas gerações, entregue, até agora, ao privilégio dos clássicos antigos e modernos...

 

Aceitamos e vamos começar a trabalhar neste ano letivo. Isso representa para mim um grande sacrifício, pois morando em São Paulo, e aqui tendo que atender a inúmeros interesses que não são só meus, mas também de meus clientes, sou forçado todas as semanas a comparecer perante meus alunos.

 

Na verdade, esse sacrifício é determinado pelo desejo que tive, logo ao ser convidado, de dar meu franco apoio à obra que Lucio Costa, o notável artista que hoje dirige a Escola Nacional de Belas Artes, atualmente empreende. Lucio Costa explicou-me o que queria, e eu tive que concordar, porque não poderia ser de outra maneira. Ele vai reunir, nesse laboratório artístico cuja direção tem em mãos, as duas correntes antagônicas: os modernos e os antiquados ou “clássicos”. Sofrendo durante o curso essas duas influências, os alunos não mais ficarão ankilosados (sic) nas ideias mumificadas das expressões artísticas antigas, mas, sim, terão arejado suficientemente o seu senso artístico, de maneira a poder julgar definitivamente o que é mais de acordo com a sua época, com o material que emprega, e com a posição atual do homem na terra...

 

(...) (Recebi o convite) Com a maior simpatia. Não é preciso dizer que os moços esperavam um acontecimento assim importante de verdadeira revolução artística, dentro da revolução política que se está processando no país. Da parte dos intelectuais, do grupo de Graça Aranha, principalmente, recebi as maiores demonstrações de apreço. [53]

 

Poucos meses depois, Warchavchik discorreu sobre a reforma modernizadora da Escola de Belas-Artes, às vésperas do Salão de 31:

 

A modernização da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro segue a de todas as escolas de belas artes dos grandes países europeus, como as da Itália, Alemanha, Rússia, etc. Todas, ou já se transformaram ou se encaminham para isso.

 

Eu, que estudei no Real Instituto de Belas Artes de Roma, fiz um curso bem à moda antiga e bem diferente do que se faz hoje em dia na mesma escola. Apesar desse ensino clássico, saiu de lá um grupo de vanguardistas que tiveram que lutar e aperfeiçoar-se autodidaticamente para conseguir o que hoje já se pode ensinar nas escolas. Isso, aliás, é um fenômeno natural, pois tudo tende a evoluir, tudo se renova e as artes não devem fugir a essa lei natural.

 

O fim (o objetivo) da reforma nas escolas é principalmente criar engenheiros arquitetos e não simplesmente decoradores. (...). Procura-se desenvolver o sentimento e conhecimento dos valores e ensina-se a dispor os volumes plásticos e as massas. Não se ensina mais que a arquitetura consista em subdividir uma superfície por meio de decorações... [54]

 

No entanto, se os professores modernistas ficaram satisfeitos em integrar o corpo docente da Escola, não foi essa a reação de certos segmentos da sociedade. Por exemplo, um ofício, do Instituto Paulista de Arquitetos, dirigido ao ministro Francisco Campos, datado de 18 de maio de 1931, protestou contra a contratação de artistas estrangeiros para ministrarem o modernismo.

O panorama artístico se altera depois da Revolução de 30, com o surgimento de uma nova geração de modernistas.

Vicente do Rego Monteiro e seu amigo, o poeta francês e diretor da revista parisiense Montparnasse, Géo-Charles, organizam em Recife a primeira exposição de 100 obras da Escola de Paris, inédita inclusive na França, exibindo obras de artistas, a maioria dos quais vistas pela primeira vez no Brasil, como Braque, Juan Gris, Dufy, De Chirico, Max Jacob, Laurencin, Léger, Miró, Lhote, Vlaminck, entre outros e depois levada para São Paulo. No Rio, foi apresentada de 6 a 20 de junho no Palacete Glória.

 

Infelizmente por não ter sido considerada pela imprensa, a exposição não causou impacto no público.

Entre 11 e 30 de outubro, organiza-se uma coletiva de artistas modernos no Roerich Museum de Nova York, cuja importância maior foi o fato de artistas modernos brasileiros terem sido convidados a expor no exterior.

 

Entre os escolhidos estão: Ismael Nery, Di Cavalcanti, Cícero Dias, Annita Malfatti, Tarsila, Gomide, Paulo Rossi Osir.

 

Em maio de 1931, Theodor Heuberger organiza na Escola Nacional de Belas-Artes uma exposição que apresenta tanto artistas de idioma alemão residentes no Brasil, quanto artistas brasileiros que foram desenvolver sua arte entre os povos de língua germânica, concretizando desse modo o entrelaçamento de ambos os povos. A maioria dos artistas participa com sucesso do Salão de 31, entre eles o professor Leo Putz, Guignard, Paulo Rossi Osir, Friedrich Maron, Hans Nöbauer, e escultores como Max Grossman e Franz Heise.

Em junho de 31, a imprensa noticia o 2º Congresso Feminista e no Rio se organiza o 1º Salão Feminino de Arte, iniciativa da Sociedade Brasileira de Belas-Artes com a colaboração da Associação dos Artistas Brasileiros, na Escola Nacional de Belas-Artes (ENBA), com grande número de obras apresentadas.

Também em junho de 31, é fundado o Núcleo Bernardelli, em homenagem a dois irmãos, os professores Rodolfo Bernardelli (1852–1931) e Henrique Bernardelli (1858–1936). Insatisfeitos com o ensino acadêmico da ENBA, eles clamam por liberdade de pesquisa, democratização do ensino e acesso dos modernistas ao Salão Nacional de Belas Artes, assim como aos prêmios de viagens ao exterior, até então dominados pelos artistas acadêmicos.

Na prática, o Núcleo Bernardelli oferecia um lugar para a convivência e aprendizagem. Fazia-se desenho com modelos vivos, pinturas ao ar livre, nus, natureza morta, retratos, autorretratos, paisagens, cenas urbanas.

O Núcleo Bernardelli funciona primeiramente no Studio Nicolas, mas depois desloca-se para os porões da ENBA, onde funciona até 1936. Nessa data, transfere-se para a Rua São José, depois para a Praça Tiradentes, n. 85, até a sua extinção em 1941.

 

Entre 1932 e 1941 são realizados cinco salões dos integrantes do Núcleo Bernardelli. Além disso, em 1933, o conjunto dessas obras é exposto no Studio Eros Volúsia e, em 1934, em mostra promovida pela Sociedade Brasileira de Belas Artes.

 

Quirino Campofiorito (1902 – 1993), José Pancetti (1902 – 1958), Milton Dacosta (1915 – 1988) são alguns dos artistas que participaram do Núcleo Bernardelli. Em outubro de 31, acontece o 2º Salão dos Humoristas, no hall do Hotel Trianon, no mesmo momento em que se realizava a XXXVIII Exposição Geral de Belas Artes – o Salão de 31.

O modernismo paulista, as insatisfações internas da Escola Nacional de Belas-Artes e as modificações institucionais do sistema educacional brasileiro transformam o Salão de 31 na expressão do núcleo gerador da arte moderna em nível nacional.

 

O poder do Estado está diretamente ligado à normalização do saber artístico, e, dentro desse contexto, acontece o Salão de 31, cuja produção artística exposta proporciona uma visão completa da transição que significou o olhar moderno no Brasil, época áurea de centralização de poder no campo das artes plásticas.

Novos caminhos para as Artes Plásticas

A XXXVIII Exposição Geral de Belas Artes, que aconteceu no Rio de Janeiro em 1º de setembro de 1931, gerou muita polêmica, como costuma acontecer com eventos que carregam em si o gérmen de uma revolução. A polêmica se espelha até mesmo no seu nome: foi chamada de Salão dos Tenentes, com referência ao papel dos tenentes na recém ocorrida Revolução de 30; Salão Lucio Costa, em relação ao seu realizador; Salão Revolucionário, por sua proposta modernista; Salon, por seu DNA francês; 38° Salão, por sua localização na série de Salões já realizados; Salão Oficial, por ser a principal atividade do poder central ligada às artes plásticas; ou simplesmente Salão de 31.

Foi um noticiarista do jornal paulista Diário da Noite que trouxe os termos "tenentes" e "generais" do contexto da Revolução de 30 para nomear, respectivamente, os artistas modernistas e os acadêmicos, na manhã do dia em que o Salão seria inaugurado. Segundo ele, os "tenentes" ocuparam a maior parte do espaço, deixando as obras dos "generais" amontoadas.

Manuel Bandeira não gostou e rebateu dias depois, com o artigo O 'Salão dos Tenentes' [1] , declarando que tal informação era mentirosa, uma vez que foram os próprios "generais" que se eximiram de participar do Salon.

Não é à toa que Lucio Costa convidou Manuel Bandeira para integrar a Comissão Organizadora do Salão. Juntamente com ele, compuseram essa Comissão o próprio Lucio CostaAnnita Malfatti, a pioneira do movimento modernista, Celso Antonio, então professor no ateliê de escultura em São Paulo e Portinari recém-chegado da Europa. 

Diário da Noite, São Paulo, 1 setembro 1931 38ª Exposição de Belas Artes

Diário da Noite, São Paulo, 1 setembro 1931
38ª Exposição de Belas Artes

O fato de um poeta – Manuel Bandeira – participar da Comissão Organizadora do Salão gerou protestos acadêmicos.

O fato de um poeta – Manuel Bandeira – participar da Comissão Organizadora do Salão gerou protestos acadêmicos de parte da maioria dos professores tradicionais, às vezes donos de verdadeiros feudos dentro da Escola; hors-concours de Salões anteriores se recusam a enviar trabalhos, tanto em sinal de protesto como por receio de serem vetados por tal Comissão. Outra causa provável do esvaziamento dos acadêmicos foi a suspensão do prêmio de viagem devido a dificuldades econômicas.
 

Na organização das salas, a Comissão Organizadora se preocupou em valorizar o que de melhor havia recebido. Manuel Bandeira disse que

 
"a principal tarefa (da Comissão) consistiu, uma vez adotado o ponto de vista de inteira liberdade, em separar e distribuir aquela massa de algumas centenas de trabalhos tão díspares, de modo a não sacrificar o bom ao mal. Desafogou-se o melhor, quer no setor dos "tenentes" (modernos), quer no dos "generais" (acadêmicos)." [2]

A montagem não obedeceu ao tradicional critério das seções, mas sim às tendências artísticas das obras. Havia salas acadêmicas e salas modernas, dando destaque às obras mais significativas e acumulando obras menos expressivas, de principiantes ou alunos da Escola. Essas salas entulhadas foram apelidadas de "nada além de 2 mil réis". [3]

Lucio Costa lamenta o fato de não terem sido "fotografados os vários setores da parte moderna da exposição, definidos por painéis forrados com aniagem, os quadros apresentados individualmente, em vez de amontoados uns sobre os outros como nos Salões anteriores, disposição esta mantida na arrumação da parte dita "acadêmica", tal como se vê nas fotos da inauguração". [4]

 

Este Salão impregnado de um caráter eminentemente político apresentou um conjunto de obras díspares nos diversos setores de pintura, escultura e arquitetura.

 

[1] DIÁRIO NACIONAL, São Paulo, 5 setembro 1931. O "Salão dos Tenentes". Manuel Bandeira.

[2] DIÁRIO NACIONAL, São Paulo, 5 setembro 1931. O "Salão dos Tenentes". Manuel Bandeira.

[3] CARETA, Rio de Janeiro, 19 setembro 1931. O "Salão dos Tenentes". Peregrino Junior.

[4] ANDRADE, Mario de. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins, s.d., p. 242. 

[48] O JORNAL, 31 julho 1931. "Uma escola viva de belas artes". Lucio Costa.

[49]  PINHEIRO, Gerson Pompeu. O novo diretor da Escola de Belas Artes e as diretrizes de uma reforma. O Globo, Rio de Janeiro, 29 nov. 1930.

[50] PINHEIRO, Gerson Pompeu. O novo diretor da Escola de Belas Artes e as diretrizes de uma reforma. O Globo, Rio de Janeiro, 29 nov. 1930. 

[51] Alexander S. Buddeus. Arquiteto belga, que chegou ao Brasil por volta de 1930, provavelmente pelas mãos de Heuberger, e que aqui ficou por 10 anos. Criou diversos edifícios modernistas na Bahia.

[52] DIÁRIO DA NOITE, São Paulo, 25 abril 1931. "Dois artistas modernistas na Escola de Belas-Artes".

[53] DIÁRIO DA NOITE, São Paulo, 22 abril 1931. "A nomeação para professores da Escola Nacional de Belas artes, de dois artistas modernos".

[54] DIÁRIO DA NOITE, São Paulo, 26 agosto 1931. "A reforma da Escola de Belas Artes e o Salão Oficial deste ano".

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