Academismo x Modernismo
- Salão 31

- 21 de jul. de 2023
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Atualizado: 26 de out. de 2023
No Rio de Janeiro, a Escola de Belas-Artes e a Academia Brasileira de Letras eram as instituições que dominavam culturalmente, sendo seus padrões acadêmicos acatados passivamente. Nesse contexto surge a figura de Graça Aranha que, tendo vivido na Europa durante a primeira década do século, estabeleceu contato com a renovação artística europeia e, na volta ao Brasil, manteve papel preponderante como acadêmico solidário com os modernistas. O autor de Canaã passa a ser o elemento de ligação entre a intelectualidade carioca e paulista, apresentando Di Cavalcanti a Paulo Prado em torno de quem se reuniam intelectuais e artistas. A conferência inaugural da Semana de Arte Moderna – de 11 a 18 de fevereiro no Teatro Municipal de São Paulo – foi proferida pelo acadêmico que abordou o tema "A emoção estética na arte moderna”. Nessa ocasião critica duramente a Academia de Letras, acusando-a de ser “um grande mal na renovação estética do Brasil” [...], e acrescenta “Este 'academismo' não é só dominante na literatura. Também se estende às artes plásticas e à música". [11]

A 19 de junho de 1924, Graça Aranha profere outra conferência, desta vez rompendo com a Academia Brasileira de Letras. "O espírito moderno" quebra com a antiga tradição de alheamento da Academia de Letras para se lançar na defesa de novas ideias estéticas. A partir dessa data, Graça Aranha assume, no Rio de Janeiro, a liderança do movimento modernista. Em entrevista ao professor Carlos Zílio, Cícero Dias destaca a importância de Graça Aranha no movimento modernista:
Esse grupo era formado pelo poeta Manuel Bandeira, lsmael Neri, Villa Lobos, Godofredo Filho, da Bahia; tinha muita gente ligada. Graça Aranha não frequentava o grupo porque já era um homem doente, de idade. Eu acho que a posição do Graça Aranha nesse movimento moderno, foi quase que decisiva. Com a ruptura dele na Academia Brasileira de Letras [...], essa atuação do Graça foi muito importante. [12]
O crítico de arte, Antônio Bento, também se refere à liderança de Graça Aranha em relação ao modernismo:
O modernismo foi lançado aqui (no Rio) depois da Conferência do Graça Aranha, em 1924, só que amorteceu um pouco, porque houve o impacto do momento, depois cessou. [13]

A Semana de Arte Moderna de 1922 significou a primeira tentativa de criar um universo simbólico coerente com a sua época e adequado à complexidade da formação cultural brasileira.
Nessa época, o Brasil despertou para a necessidade de romper com os moldes impostos pela Escola de Belas-Artes.
Nessa época, no que se refere à arte, o Brasil despertou para a necessidade de mudar internamente, tentando romper com a imposição dos moldes impostos pela Escola de Belas-Artes, e externamente procurando acertar o compasso com as modernas correntes europeias.
O Brasil procurava adotar um olhar moderno, interpretando novos valores distanciados das exigências ditadas pelo sistema de poder que pontificava no campo das artes.
Além dessa questão, tentava conciliar na interpretação de novos valores, uma fórmula para que o artista liberasse a criatividade, destacando os aspectos culturais brasileiros que Antônio Cândido caracteriza como portadores de uma "ambiguidade fundamental", uma vez que somos "um povo latino; de herança cultural europeia, mas etnicamente mestiço, situado no trópico, influenciado por culturas primitivas, ameríndias e africanas". [14]
No campo da pintura, as duas representantes do modernismo foram Annita Malfatti com sua influência expressionista, e Tarsila do Amaral ligada à tendência geometrizante do artista francês Fernand Léger.


Curioso notar que essas duas correntes artísticas, além de serem antagônicas, estavam defasadas em relação às vanguardas europeias, mas foi a fórmula de ruptura brasileira, a maneira que a pintura encontrou para a afirmação da identidade nacional. Para desenvolver o que os modernistas denominam de brasilidade, o artista adota um procedimento que a arte europeia rejeitou desde o Salon des Refusés [15], em 1863, quando Manet utiliza o tema apenas como pretexto para a pintura” [16] , no caso, a obra Le déjeuneur sur l’herbe (Almoço sobre a relva).
Na imagem, Catálogo das obras de pintura, escultura, gravura, litografia e arquitetura recusadas pelo Júri de 1863 e expostas, por decisão de Sua Majestade O Imperador, no Salão Anexo do Palácio Champs Élysées, em 15 de maio de 1863.

Essa foi a grande ruptura: a pintura prevalece sobre o tema. O artista cria sem copiar. A obra de arte passa a ser autônoma, existindo por si e em si. Na França o Salon des Refusés consagrou o impressionismo, ao passo que no Brasil, nessa época, o academismo ainda estava em processo de instauração.
O que o academismo impunha como padrão importado era um modelo que devia ser copiado de maneira objetiva. Nesse sentido, o modernismo rompe com o objetivismo na arte e tende para o subjetivo, valorizando o imaginário brasileiro. Helios Seelinger descreve o que a Paulicéa tramava no início da década de 30 para romper com esse padrão:
Em linhas gerais, o que pretendemos é integrar os artistas na corrente irresistível das grandes transformações modernas. Como se sabe, a Arte, no Brasil, a despeito de tentativas em contrário, tem estado quase sempre divorciada do meio, do ambiente nacional. Circunstâncias múltiplas concorrem para isso. Uma delas é a filiação aos estreitos moldes acadêmicos, ao classicismo impertinente. São as tais escolas que precisamos destruir. Não se compreenda por essas palavras que pretendemos abolir o desenho, as normas segundo as quais o artista completa a sua educação. O que queremos é a ausência de superstição clássica, que gera o amaneiramento, a “standardização” (sic) artística, caindo na monotonia das repetições. (...)
Libertar-se dos pequenos agrupamentos viciados pela rotina, de maneira a formar uma corrente nova e independente; criar, para isso, ateliers livres onde o artista trabalhe conforme sua orientação e temperamento; estudar na nossa natureza (...) os elementos que servirão para a nova arte decorativa e ornamental, pois que na ornamentação devemos e podemos ter uma base caracteristicamente brasileira, sadia e fortemente nacional – eis aí as linhas essenciais do programa que nos estamos impondo. [17]
No entanto, a segunda reunião entre esses mesmos artistas e intelectuais, imbuídos de tão nobres propósitos, revelou que este era um movimento natimorto. Ocorrida no Restaurante Telemaco, o que se viu foi
o tumulto, os despeitos, as questiúnculas à toa e as idiossincrasias. Em suma, o fracasso de uma tão bela tentativa de congraçamento dos artistas pintores de São Paulo, do Brasil. E, o que foi mais triste e lamentável, após a segunda reunião, começaram pelos jornais a promoverem retaliações pessoais. Foi um campeonato de injúrias recíprocas. [18]
Diante desse quadro, Helios Seelinger se desgostou, partiu para a capital da República e não mais tornou ao convívio com os artistas paulistas.
Mas, afinal, o que é “modernismo”? O que tanto se buscava? Modernismo, no amplo sentido de ideias, corresponde à tendência mais autêntica da arte e do pensamento brasileiro. Segundo Antônio Cândido,
Nele e sobretudo na culminância em que todos os frutos amadureceram (1930–40), fundiram-se a libertação do academismo, dos recalques históricos, do oficialismo literário; as tendências de educação política e reforma social; o ardor de conhecer o país. A sua expansão coincidiu com a radicalização posterior à crise de 29, que marcou em todo o mundo civilizado uma fase nova de inquietação social e ideológica. [19]
O modernismo significou uma ida ao povo por toda parte.
Concluindo, Antônio Cândido diz que ocorreu uma "ida ao povo" por toda parte. A redefinição cultural desencadeada em 22 preparou o Brasil para o decênio seguinte. Em São Paulo, o progresso econômico do estado era florescente. Com a economia agrária exportadora de café, ingressa por um processo de industrialização acelerada. As elites mantinham contato direto com a Europa sem o intermédio das academias.
No Rio, a sociedade culturalmente conformista era apegada a modelos estéticos europeus já defasados. Era o centro irradiador das diretrizes culturais do país, pois a Escola de Belas-Artes, reduto do ensino oficial das artes no Brasil, defendia a orientação acadêmica moldada no neoclássico.
Quanto às primeiras reações ao sistema artístico imposto, Reis Junior lembra que conviveu e participou de um grupo que se reunia por volta de 1918/19 para debater as limitações do meio artístico; segundo ele, anteriores às de São Paulo onde não havia tradição do cultivo artístico.
Com referência ao movimento da Semana de 22, o professor José Maria dos Reis Júnior afirma, em entrevista, ter sido este uma iniciativa mais de intelectuais do que de artistas. Quanto às artes plásticas especificamente, disse não ter havido repercussão nos outros estados do Brasil pois, segundo confirmação de Joaquim Inojosa, [20].
Do modernismo nada se falava, mesmo porque o brado da Semana de Arte Moderna de São Paulo se diluíra nos ecos dos esplendorosos festejos da Independência e naqueles da arrancada heroica dos dezoito do forte... Não havia rádio nem televisão, nem transporte aéreo. Quase não se liam jornais do Rio, nem suas revistas, cujos exemplares se destinavam apenas aos privilegiados assinantes que os recebiam em longos atrasos normais. [21]
Mais adiante prossegue Inojosa:
(...) Se a Semana de Arte Moderna se tivesse realizado na capital da República, sua repercussão pelos estados teria sido talvez imediata, como foi o discurso de Graça Aranha na Academia Brasileira de Letras". [22]
Nas palavras de Cícero Dias,
O movimento moderno no Brasil foi um movimento à procura de alguma coisa, quer dizer: Tarsila, Di Cavalcanti, escritores como Mário de Andrade, Gilberto Freyre com o movimento regionalista do Norte. Mas por exemplo, no caso meu e de Ismael Neri, nós estávamos muito com uma obra paralela. O Ismael Neri, por exemplo, acreditava que o moderno era o internacional; você tinha que internacionalizar uma obra de arte para você dar o sentido moderno. Eu achava o contrário. Para mim você poderia fazer o moderno, a pintura regional, para chegar ao universal, aliás foi o que Gilberto Freyre escreveu em Pernambuco em Casa-grande e senzala... Mas a obra de Tarsila do Amaral e a obra de Di é que, para mim, foram de fato as pioneiras da pintura brasileira, pela cor, forma... [23]
Mais adiante, nesse mesmo texto, e para caracterizar o modernismo em São Paulo e no Norte, Cícero Dias se vale da comparação de seu trabalho com o do famoso pintor russo Chagall:
(...) essa aproximação (com Chagall) foi da seguinte maneira: é que eu sempre me preocupei com uma pintura popular e também Chagall se preocupou na Rússia; a pesquisa que eu fiz, no movimento regionalista do Norte, de que participei depois do movimento, era mais ou menos parecido com o que houve na Rússia, na época de Chagall. Porque em São Paulo, o movimento modernista da Semana Moderna era um movimento de arte e literatura; o movimento regionalista do Norte foi um movimento mais ligado à sociologia, à antropologia do que o movimento de São Paulo. [24]

A relação Rio–São Paulo é descrita por Mario de Andrade em 1942 em texto sobre o movimento modernista. O famoso crítico define São Paulo, cenário da Semana de 22, como
uma cidade grande mas provinciana; [...] o Rio era muito mais internacional, como norma de vida exterior. […] Porto de mar e capital do país, o Rio possui um internacionalismo ingênito. São Paulo era espiritualmente muito mais moderna, porém fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente. Caipira de serra-acima, conservando até agora um espírito provinciano servil, bem denunciado pela sua política, São Paulo estava ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato mais espiritual e mais técnico com a atualidade do mundo. [25]
Com a crise de 1929, a queda do café provoca o eclipsamento de São Paulo como polo ativador das artes e gradualmente o Rio torna-se centro de destaque político-cultural.
Depois da Revolução de 1930, o Rio amplia suas manifestações modernistas.
[10] Trecho da Entrevista de Roberto Burle Marx (1909-1994) a Maria Cristina Burlamaqui e Lucia de Meira Lima. Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1984.
[11] ARANHA, José Pereira da Graça. Obras completas. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/Conselho Nacional de Cultura, s.d.
[12] Trecho da Entrevista de Cícero Dias (1907–2003) para o Professor Carlos Zilio. Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1981.
[13] Trecho da Entrevista de Antônio Bento (1902–1988) para Lúcia de Meira Lima e Maria Cristina Burlamaqui. Rio de Janeiro, 6 de janeiro de 1982.
[14] CÂNDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1976, p. 119.6
[15] Salon des Refusés era o nome dado às exposições paralelas ao Salon de Paris, em 1863. No Salon des Refusés (Salão dos Recusados, em francês), eram expostas as obras de arte recusadas no salão oficial, que era destinado aos artistas membros da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Salon_des_Refus%C3%A9s. Acesso em 22/12/2017.
[16] BRITO, Ronaldo. A Semana de 22: o trauma do moderno. In: TOLIPAN. Sergio et alii. Sete ensaios sobre o modernismo. Rio de Janeiro: Funarte, 1983, p. 17. (Cadernos de Textos, 3).
[17] A GAZETA. São Paulo, 09 jan 1931. “O momento político na Paulicéa”.
[18] BRASIL NOVO. São Paulo. 10 abril 1933. “A Arte e a Revolução”.
[19] CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1976, p. 124.
[20] Joaquim Inojosa foi advogado, jornalista e escritor, nascido em Pernambuco em 1901 e morto em 1987 no Rio de Janeiro.
[21] INOJOSA, Joaquim. Movimento modernista em Pernambuco. In: AMARAL, Aracy Abreu. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 49.
[22] Id.
[23] Trecho da Entrevista de Cícero Dias (1907–2003) para o Professor Carlos Zilio. Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1981.
[24] Id.
[25] ANDRADE, Mario de. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins, s.d., p. 235.




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