Um pintor alemão diante da paisagem tropical
- Salão 31
- 2 de out. de 2023
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Leo Putz no Rio de Janeiro
De uma entrevista publicada em 15 maio 1930, no Deutsche La-Plata Zeitung, Buenos Aires.
Tradução de Leo Epstein.
O motivo de minha viagem ao Brasil: uma velha nostalgia pelos trópicos. Desde Gauguin o desejo fervilha no sangue dos pintores. Aonde poderia ir? Para a Índia? Para os Mares do Sul? A situação material dos artistas alemães na época do pós-guerra não permitia tais viagens. Também perdemos tudo o que ganhamos com o trabalho artístico em compensações materiais do tempo anterior à guerra. A Índia Inglesa está fechada para os pintores alemãs. A moda BALI não atrai a qualquer um. Ofereceu-se uma alternativa: minha mulher tem parentes em São Paulo. Há oito anos estamos conversando sobre tal viagem. Durante oito anos eu me mantinha contra. Finalmente, quando me deixei convencer, a contragosto, recebi o pagamento mais lindo que um pintor podia desejar: algo completamente novo se apossou de mim. Alguém pode imaginar o que representa o surgimento de algo novo para um pintor que pensou ter esgotado todas as possibilidades da técnica, todos os caminhos do desenvolvimento da cor e luz? Pode um pintor, que já festejou seu 60º aniversário, ser posto diante de problemas novos?
Leo Putz fala do Brasil com um temperamento juvenil, ele que era um dos expoentes da Munique Impressionista. Debaixo de seu cabelo grisalho lampeja o entusiasmo de um homem que, provavelmente, contornou para sempre o envelhecimento mental. Com a vivacidade de um descobridor que, depois de uma vida de experiências constantes e mudanças, se vê diante de um mundo de aparições nunca pensadas, assim se expressou:
Parei, inicialmente, com emoção auscultante, como se nunca tivesse pintado. Descrever em palavras a paisagem do Rio é quase impossível. Pintá-la, completamente fora de questão. Não vejo caminho que possa levar a um resultado plausível. A primeira impressão foi êxtase. Abatido pela sinfonia de luz e formas desse mundo, procurei digerir, aos poucos, todo o visto. A primeira procura por um valor de expressão pictorial só podia basear-se em observações. O resultado foi que acabei destruindo todos os primeiros trabalhos. Esta natureza me dominou completamente. Embevecimento – a única coisa que então tomou conta de mim.
Constatei, observando: aqui sucumbe toda a antiga sabedoria. É dever reformular tudo. Quando dissipou o entorpecimento, depois de um enrijecimento próprio e vagaroso do abatimento, me ficou claro: o paisagista não vê no Brasil o ambiente perspectivo, dividido em primeiro, médio e plano de fundo pela gradação de cores e distribuição de luz, mas por um total, igualmente claro, se desmanchando igualmente na profundeza. Ele não vê qualquer resultado do processamento colorido dentro da paisagem após o azul limitante do horizonte, mas uma mescla tênue de tons encimados por uma luz mágica. Ele vê, em lugar do azul típico da paisagem, uma ondulação leve de vermelho, róseo, lilás; ele não vê contraste forte algum, mas uma modulação compacta complementar de valores esvoaçantes. O horizonte não é mais um traço fixado pelo pincel feito de ar, luz com um substrato indefinível do colorido. Está errado quando se diz que a luz do Brasil marca as cores da paisagem tão intensa, tão forte e incandescente que impossibilita sua pintura. Ao contrário: as cores são absorvidas, em sua importância local, em sua força luminosa, pela luz refletida milhares de vezes pela água e pelo céu e tão desmaterializadas que as torna incrivelmente leves. O fenômeno mais impressionante da paisagem do Rio é o predomínio do vermelho, do róseo e tons semelhantes: terra vermelha, casas vermelhas, tons encarnados como se pode observar na Europa só nos corpos nus. O verde das árvores é muitas vezes uma luminosidade perto de prata, um desvio de tons diáfanos, que, como todas as cores do Rio, só podem impressionar tão fortemente o olho do naïf pela sua transparência desmedida. Mas é sempre tudo tão leve e fofo, tão equilibrado, que só existem transposições de somente um quarto de tom, de um prolongamento imenso, sem contrastes, de tons inteiros ou acordes. O contraste, como é conhecido na Alemanha, entre o verde do pinheiro e o verde do carvalho, é desconhecido nesta paisagem. Se acontece um forte complexo pictórico na paisagem, então surge uma densidade luminosa que irisa, atenua e absorve as cores laterais. E isto temos que pintar!
Os impressionistas franceses teriam encontrado aqui o paraíso de seus sonhos. Um Sisley, um Renoir se sentiriam presenteados por esta natureza. Tudo se dilui em uma coloração diante do olho perscrutador do pintor, retraindo-se da paleta. Quando eu – tanto aconteceu no figurativo como no paisagístico – pela primeira vez tentei pintar a chuva, pensei que fosse preta e teria que pintá-la preta. Isto me aconteceu igualmente com o verde da vegetação: tudo tons laterais, inferiores e médios; na pele do mulato se reflete todo um mundo de cores; a coloração, não a forte, mas a diluída, cresce cada vez mais quando mais o pintor penetrar no detalhe. Como se pode captar o infinito?
Começar pelo início. Aprender, esforçar-se como um aluno acadêmico, traço por traço, valor por valor. Vinte estudos de uma paisagem de igual importância, mudando, de tarde, ao meio-dia, de manhã. Passo a passo luta o observador pela linguagem do fenômeno da paisagem. Mas ainda não consegui passar dos estudos. Sua execução própria acontece mais tarde; o primeiro foi concentração do material. Assim, mais do que cem quadros surgiram, toda uma galeria de mulatas incluída.
A dificuldade técnica não se baseia também no fato da mudança rápida e mágica da luz no Brasil?
Esta observação é certa. Quem aprendeu a observar experimentalmente, conta em meia hora uma fila de mudanças de luz. A gente necessita ser rápido nas observações, nas absorções e no pintar quando se pretende acompanhar tudo. Tudo isto acontece na natureza exuberante do Rio que, durante minha estada de muitos meses, apresentava diariamente novos tesouros. Explorei-os em todas as direções; com o suor na minha face, carreguei o estojo de tintas para os morros, e na febre do labor jamais senti tanta satisfação, como lá. Quase tentado para ficar por lá para sempre. Mais ainda por ser, para o pintor, a vida do povo uma segunda surpresa. O carnaval nos “bairros”, um pedaço da África numa metrópole, sentimento mítico, festejos da vida de fundo alegre-religioso, diversidade de raças, um jogo desmedido da natureza com formas humanas mais que ficaram gravadas em mim eternamente. Os impulsos carnais dessa festa são dirigidos de uma certa forma. A dança, que é de uma sensualidade como a renovação eterna da natureza, é, também, adaptada ao ambiente como as casas coloridas das mulatas se enquadram no tapete ondulante da natureza. Os negros pintam suas cabanas, seguindo um instinto primitivo, em cores complementares à cor principal dominante, assim como “pinta” o céu e a vegetação. Não se pode retirar coisa alguma dessa paisagem e desse povo sem que sua totalidade ficasse destruída. Nisto se observa mais uma e muito preciosa dificuldade. Acrescenta-se, ainda, que a história mesclou a roupa natural do Rio com gostos próprios. Os restos da arquitetura colonial, o ambiente específico do destruído, do passado, bem junto ao mais moderno é um elemento básico para o pintor. Uma Veneza decaída do Brasil é Mangaratiba (Angra dos Reis), um antigo porto ao sul do Rio, um vilarejo provincial brasileiro e maluco, aventureiro e medonho, um poema da disputa eterna entre a natureza e o homem. As plantas crescem nos quartos úmidos do hotel, troncos de árvores furam muros. Casas coloniais que mostram somente as fachadas, uma igreja cujo altar aponta para o céu aberto – uma escala de “odores” tão grande quanto a das cores, mexe com nossas narinas de forma desagradável. Imbuí, Paquetá, as favelas dos morros, a transparência luminosa em forma de pérolas dessas cores, o tumulto infinito das formas da paisagem e o crescimento fabuloso dos moradores escuros dos arrabaldes, sob tal impressão maravilhosamente leve e desintegrante é a luz dos trópicos, tudo penetrando – eis aqui a ventura de quem não está mais no início de sua vida – ter reencontrado no Brasil a sua juventude.
LEO PUTZ | CRONOLIGIA / BIOGRAFIA *
1869 no dia 18 de junho, nasce LEO PUTZ, como o mais velho de três irmãos, na cidade de Meran (Merano, sul do Tirol, atual Áustria) e é batizado na religião católica. Pai: Franz Seraphin Karl Putz, prefeito e presidente da organização da estação climática de Meran. Mãe: Sophie Hanl, viúva de Poetzelberger, filha do médico Hanl de Karnabrunn (Áustria).
1875 Leo frequenta a escola primária de Meran.
1876 Primeiros desenhos a lápis: paisagem, pássaros.
1878 Ginásio de Meran.
1884 Desenvolvimento e dificuldades de escolha profissional. Leo quer ser pintor. O pai rejeita.
1885 Leo consegue seguir a carreira de pintor e, com 16 anos, transfere-se para Munique, Alemanha, no endereço Leopoldstrasse, 35.
1886 Primeiras instruções de desenho com seu meio-irmão Prof. Robert Poetzelberger, amigo de Adolf Hoelzel.
1887 Primeiro autorretrato: pequeno desenho a carvão, em 19 de dezembro.
1888 em 13 de outubro, início dos estudos na classe natural do Prof. Gabriel V. Hackl, na Academia Real das Artes, Munique.
1889 Longa permanência em Dachau, Alemanha.
1890 Viagem de estudos para Rothenburg ob der Tauber, Alemanha.
1891 Estudos na Academia Julian, Paris. Seus professores são Adolphe Bouguereau e Benjamin Constant. Viagem de estudos a Londres, com Fritz Strobentz.
1892 Volta de Paris. Convocação militar obrigatória em Meran. Em 04 de abril, dá-se a fundação da Sociedade dos Artistas Criadores, seção Munique (Putz se associa em 1894).
1893 Aluno do pintor e professor Paul Hoecker, em Munique, no endereço Kaulbachstrasse, 63. Dessa classe de atelier resultaram, depois, os colaboradores do JUGEND e SCHOLLE, aos quais pertencia Leo Putz. Retrato do pai.
1894 17 de setembro: falecimento do pai, em Bruneck.
1895 Atelier próprio em Munique (Findlingstrasse 31/3), pintor livre. Primeira apresentação na “Sezession”, com 3 quadros. O trabalho VANITAS chama a atenção.
1896 Fundação do semanário ilustrado de Munique: JUGEND (Juventude), pelo Dr. Georg Hirth.
1897 Putz chama novamente a atenção por seu trabalho monumental VOM TOD ZUM LEBEN (Da Morte À Vida). Primeiros desenhos de contos.
1898 e nos anos seguintes: amizade com a casa de Thomas e Heinrich Mann, em Munique. Viagem à Itália (Veneza, Siena etc.).
1899 Sócio fundador do grupo de artistas SCHOLLE.
1900 Estudos de luz livre em Seeon e Westling, na Alta Bavaria. Primeiros desenhos de canoas.
1901 O grande quadro IN DER LAUBE. Sócio da Secession de Viena (até 1933).
1902 Primeira venda para o exterior: o quadro IDYLLE segue para a Galeria Nacional de Budapest.
1903 18 de fevereiro: falecimento da mãe. Primeiros desenhos de caramujos. A exposição de verão da SECESSION de Munique apresenta, entre outros, a concepção do quadro 1001 NOITES (Tempera).
1904 SITZENDER AKT e PICKNICK são as primeiras compras estaduais para a Real Pinacoteca de Munique. Surge a primeira concepção do retrato de Frieda Blell, sua futura mulher, diante do Castelo Planegg. Putz se instala em um novo e grande atelier em Munique, Pettenkoferstrasse, 35.
1905 Escândalo acerca do quadro BACCHANAL, que acaba sendo retirado do Palácio de Cristal por causa de sua “indecência”. 08 de agosto: desastre de automóvel, estudos em Schleissheim interrompidos. 07 de novembro: o antigo cantor e conhecedor de arte Franz Josef Brakl abre uma LOJA MODERNA DE ARTE em Munique, Goethestrasse, 64.
1906 Abril: primeira exposição coletiva na LOJA MODERNA DE ARTE BRAKL e outras exposições em Berlim, Leipzig e Viena. Cuidados permanentes de venda. Estudos no SILBERMANNGARTEN, na estação ferroviária Este de Munique.
1907 Segundo autorretrato. Outros estudos do Silbermanngarten, com os colegas de pintura e amigos Gustl Buchner, Hans Roth, Fridolin Lauer, Fritz Strobentz.
1908 Sociedade nas exposições em Dresden e Nova York. É publicada a monografia LEO PUTZ, de Wilhelm Michel, em colaboração com Georg Biermann e Franz Josef Brakl.
1909 Aos 40 anos, Leo Putz é agraciado com o título de Real Bavaro Professor, honraria muito rara para um artista livre. Início dos estudos de verão-outono em Hartmannsberg, na região doa lagos da alta Baviera, junto com o ciclo de amigos Frieda Blell, Ella Räuber, E. v. Coltelli, Fritz Strobenz.
1910 São temas constantes Hartmannsberg, paisagens, quadros de barcos e poses. No salão feminino da LOJA MODERNA DE ARTE BRAKL, expõe o quadro CICLOS DA VIDA DE UMA MULHER. Participação das exposições de Frankfurt e Paris.
1911 Surge a série BADENDE.
1912 Segunda exposição coletiva da LOJA MODERNA DE ARTE BRAKL.
1913 28 de julho: casamento com a pintora e artista Frieda Blell.
1914 Comparece com o quadro AM UFFER (1909) na exposição do Instituto Carnegie, em Pittsburgh. Última estada de verão-outono em Hartmannsberg com o pintor Prof. Julius Hess e família. Amizade com o médico e parapsicólogo Albert Freiherr v.Schrenk-Notzing.
1915 08 de maio: nasce o filho Helmut. Exposição Panama-Pacífico em São Francisco (USA). O quadro AM UFER recebe a medalha de ouro e é adquirido pela Winterbotham Collection de Chicago.
1917 Compra de um terreno em Gauting, Frühlingsstrasse, e construção de uma casa-forte. 1917-1918: estudos de verão-outono em Gauting.
1919 50° aniversário. Seu aluno Hans von Schrötter mora temporariamente no seu atelier em Munique.
1920 Pela primeira vez após a guerra, Putz viaja a Meran para visitar parentes próximos. Forte demonstração de saudades do local de nascimento.
1922 Estada em Ulm. Clínica particular do Dr. Mendler. Desenhos de operações.
1923 Paisagens de Seefeld (Bavaria), no parque do castelo do conde Törring, junto com seu aluno Hans von Schrötter. Durante o Natal, mudança para a casa campestre em Gauting, recém construída.
1924 Estudos de pose com os modelos Toni e Liesl.
1925 Concessão e sócio de honra da Academia de Arte da Bavaria.
1926 Livro ilustrado KÖNIG DROSSELBART, editora Schols, Mainz. Ilustrações para a novela WARENKA, de Leo Tolstoi. A sobrinha Riccarda Putz, agregada da família, é muitas vezes retratada.
1927 Trabalhos em Gauting com o modelo Adelheid.
1928 Terceiro e último autorretrato. Julho: visita a uma exposição de Gaugin na Basileia. Dezembro: a convite de uma prima de sua esposa, Leo Putz, com mulher e filho, passando por Berlim e Bremerhaven, viaja no “Sierra Morena” para a América do Sul. Em janeiro, toma residência em São Paulo, Brasil.
1929 Mudança para uma nova escala de cores tropicais. Muitos quadros pintados nesse ano são destruídos. Passagem por Cajueiras e viagem a Guarujá. Permanência no Rio de Janeiro para estudos.
1930 Viagem do Brasil à Argentina. Putz e família permanecem em Buenos Aires por 8 meses. Seus retratos são elogiados. Exposição coletiva no Salão Mueller, Buenos Aires.
1931 Volta ao Rio de Janeiro. Março a abril: exposição de seus quadros na Galeria Heuberger e na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Putz é nomeado Professor-extraordinário pelo Ministro da Cultura brasileiro e assume uma classe de composição na ENBA, a convite de Lucio Costa, então diretor desta. O atelier em Munique, Pettenkoferstrasse, 35 é fechado.
1932 Paisagens e estudos de retratos no Rio de Janeiro.
1933 Novamente pintor livre. Em janeiro, viagem a Teofilo Ottoni e Bahia: estudos na “mata virgem” e na região seca. Putz e filho são atacados por doença tropical. Volta da família à Europa. Permanência em Gauting e viagem a Meran.
1934 Desenhos a lápis em Pertisai/Achensee (Tirol)
1935 Exposição coletiva dos quadros tropicais na Kunstverein (sociedade de arte), em Munique.
1936 Fuga para Meran, em consequência de dificuldades pessoais com o regime nacional-socialista. Ele produz principalmente natureza morta de flores, paisagens, castelos etc. de sua terra natal.
1937 Permanência de verão em Gauting. Últimos quadros: flores.
1938 02 de setembro: fechamento das SECESSIONEN e de todos os grupos artísticos de Munique.
1939 Páscoa: viagem de 14 dias a Roam com seu amigo e protetor Dr. Bruno Bruhn e sua mulher. Retratos em pastel das famílias Amonn, Bruhn e Eineder. Durante Natal, visita rápida a Berlim.
1940 21 de junho: Leo Putz morre depois de doença grave, em Meran. O corpo é transferido para Gauting no Cemitério Campestre. Na pedra tumular estão gravadas as armas da família e, segundo seus desejos da JUGEND, um cesto de rosas onde dorme um pequeno anjo (PUTE, em alemão).
* Tradução do original (STEIN, Ruth. Leo Putz. Edition Tusch. Viena, Austria, 1974), em alemão, por Leo Epstein, em 1984, e revisado por Heloisa Padilha, em 2017.
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